Mons. José Maria Pereira
Bispo Auxiliar Eleito da Arquidiocese São Sebastião do Rio de Janeiro
Começou a Quaresma com o relato da misteriosa cena de Jesus, deixando-se tentar pelo diabo. Dá-nos exemplo de humildade e ensina como vencer as tentações que sofremos, durante a vida.
Ora, ninguém está dispensado de passar por essas provas da fé, que são as tentações. São muitas e querem desviar o coração humano para o mal, para a desobediência e a ofensa a Deus. Não podemos nos assustar com as tentações, como se fossem algo de inesperado. Da tentação, saímos vencedores e mais santos, quando resistimos, e saímos vencidos no pecado.
Estamos num tempo de penitência e de renovação interior, para prepararmos a Páscoa. Tempo da salvação, intenso, cheio de graça, para ser vivido, profunda, interior e pessoalmente. Precisamos fomentar um desejo, profundo e eficaz, de voltar, uma vez mais, para Deus, estar mais perto dEle.
Na sua duração de quarenta dias, a Quaresma possui uma indubitável força evocadora. De fato, ela tenciona recordar alguns acontecimentos que cadenciaram a vida e a história do antigo Israel, voltando a propor-nos, também a nós, o seu valor paradigmático: pensemos, por exemplo, nos quarenta dias do dilúvio universal, que terminaram com o pacto de Aliança, estabelecido por Deus, com Noé, e, assim, com a humanidade; e, nos quarenta dias de permanência de Moisés no Monte Sinai, aos quais se seguiu o dom das tábuas da Lei. O período quaresmal quer convidar-nos, sobretudo, a reviver, com Jesus, os quarenta dias, por Ele transcorridos no deserto, rezando e jejuando, antes de empreender a sua missão pública. Hoje, também nós, fazemos um caminho de reflexão e de oração, com todos os cristãos do mundo, para nos dirigirmos, espiritualmente, ao Calvário, meditando os Mistérios centrais da fé. Assim, preparar-nos-emos para experimentar, depois do Mistério da Cruz, a alegria da Páscoa da Ressurreição.
Neste primeiro Domingo da Quaresma, encontramos Jesus que, depois de ter recebido o Batismo de João Batista, no rio Jordão (Mc 1, 9), sofre a tentação no deserto (Mc 1, 12-15 e Lc 4, 1-13). O deserto, que se fala no Evangelho, tem vários significados. Pode indicar a situação de abandono e de solidão, o “lugar” da debilidade do homem, onde não existem ajudas, nem seguranças, onde a tentação, faz-se mais forte. Mas, ele pode indicar, também, um lugar de refúgio e de amparo, como foi para o povo de Israel que se livrou da escravidão egípcia, onde se pode experimentar, de modo particular, a Presença de Deus. Jesus “permaneceu quarenta dias, no deserto, onde foi tentado pelo demônio (Lc 4, 1-2).
Quaresma é, para nós, um tempo forte de conversão e de renovação, em preparação à Páscoa. É tempo de rasgar o coração e de voltar ao Senhor. Tempo de retomar o caminho e de se abrir à Graça do Senhor, que nos ama e nos socorre. É um tempo sagrado para aprofundar o Plano de Deus e para rever a nossa vida cristã. E, nós somos convidados pelo Espírito ao DESERTO da Quaresma para nos fortalecer nas TENTAÇÕES, que, frequentemente, tentam nos afastar dos planos de Deus.
A Quaresma comemora os quarenta dias que Jesus passou, no deserto, como preparação para esses anos de pregação que culminam na CRUZ e na glória da Páscoa. Quarenta dias de oração e de penitência que, ao findarem-se, desembocam na cena que Lucas narra no cap. 4, 1-13. É uma cena cheia de mistério, que o homem, em vão, pretende entender – Deus, que se submete à tentação, que deixa agir o Maligno –, mas, que pode ser meditada, se pedirmos ao Senhor que nos faça compreender a lição que encerra. São Leão Magno comenta que “o Senhor quis padecer o ataque do tentador para nos defender, com a sua ajuda, e, para nos instruir com o seu exemplo”.
Que nos pode ensinar este episódio? Como lemos no Livro da Imitação de Cristo, “o homem nunca está, totalmente, isento da tentação, enquanto viver… mas, é com a paciência e a verdadeira humildade que nos tornaremos mais fortes do que todos os inimigos” (Livro l, c. Xlll). Com paciência e com humildade, poderemos seguir o Senhor todos os dias, aprendendo a construir a nossa vida sem O excluir, ou como se Ele não existisse. No entanto, poderemos viver nele e com Ele, porque somente Ele é a fonte da vida verdadeira. A tentação de eliminar Deus, de pôr ordem sozinho em si mesmo e no mundo, contando unicamente com as próprias capacidades, está sempre presente na história do homem, todavia nunca deu certo.
É a primeira vez que o demônio intervém na vida de Jesus, e o faz isso abertamente. Põe à prova, Nosso Senhor. Talvez, o inimigo queira averiguar se chegou a hora do Messias. Jesus deixa-o agir para nos dar exemplo de humildade e para nos ensinar – diz São João Crisóstomo –. O Senhor quis, também, ser conduzido ao deserto e, ali, travar combate com o demônio a fim de que os batizados, que depois do batismo, sofrem maiores tentações, não se assustem com isso, como se fosse algo de inesperado. Se não contássemos com as tentações que temos de sofrer, abriríamos a porta a um grande inimigo: o desalento e a tristeza.
Jesus proclama que “cumpriu-se o tempo, e está próximo o Reino de Deus ” (Mc 1, 15). Ele anuncia que, nele, acontece algo de novo: Deus dirige – se ao homem de modo inesperado, com uma proximidade singular, concreta, cheia de amor; Deus encarna – se e entra no mundo do homem para assumir sobre si o pecado, para vencer o mal e restituir o homem ao mundo de Deus. Todavia, este anúncio é acompanhado pelo pedido de corresponder a um dom muito grande. Com efeito, Jesus acrescenta: “Arrependei –vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). Eis o convite a ter fé em Deus e a converter todos os dias a nossa vida à sua Vontade, orientando para o bem todas as nossas obras e pensamentos. O tempo da Quaresma é o momento propício para renovar e tornar mais sólida a nossa relação com Deus, através da oração quotidiana, dos gestos de penitência e das obras de caridade fraterna.
A narrativa das tentações, que Jesus sofreu, mostra que Jesus “foi experimentado em tudo” (Hb 4, 15), comprovando, também, a veracidade da Encarnação do Verbo de Deus.
Diz Santo Agostinho que, na sua passagem por este mundo, nossa vida não pode escapar à prova da tentação, dado que nosso progresso se realiza pela prova. De fato, ninguém se conhece a si mesmo, sem ser experimentado; e não pode ser coroado sem ter vencido; e não pode vencer, se não tiver combatido; e não pode lutar, se não encontrou o inimigo e as tentações.
Por isso, a existência do ser humano, nesta terra, é uma batalha contínua contra o mal. É essa luta contra o pecado, a exemplo de Cristo, que devemos intensificar, nessa Quaresma; luta que constitui uma tarefa para a vida toda.
O demônio promete sempre mais do que pode dar. A felicidade está muito longe das suas mãos. Toda a tentação é sempre um engano miserável! Mas, para nos experimentar, o demônio conta com as nossas ambições. E, a pior delas é desejar a todo o custo a glória pessoal, a ânsia de procurarmo-nos, sistematicamente, a nós mesmos, nas coisas que fazemos e projetamos. Muitas vezes, o pior dos ídolos é o nosso próprio eu. Temos que vigiar, em luta constante, porque, dentro de nós, permanece a tendência de desejar a glória humana, apesar de termos dito ao Senhor que não queremos outra glória que não a dEle. Jesus também se dirige a nós, quando diz: “Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás”. E é isto o que nós desejamos e pedimos: servir a Deus, alicerçados na vocação a que Ele nos chamou.
O Senhor está sempre ao nosso lado, em cada tentação, e diz-nos afetuosamente: “Confiai: Eu venci o mundo” (Jo16, 33). E, com o salmista, podemos dizer: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei?” (Sl 26, 1).
“Procuremos fugir das ocasiões de pecado, por pequenas que sejam, pois, aquele que ama o perigo, nele perecerá” (Eclo 3, 27). Como Jesus nos ensinou na oração do Pai Nosso: “Não nos deixeis cair em tentação”. É necessário repetir, muitas vezes, e, com confiança, essa oração, porque “quem procura a Deus, querendo continuar com os seus gostos, procura-O de noite e, de noite, não O encontrará” (São João da Cruz).
Que a Quaresma seja para todos os cristãos uma ocasião de conversão e de estímulo mais corajoso à santidade. “Converter-se quer dizer para nós, procurar novamente o perdão e a força de Deus, no Sacramento da Reconciliação e, assim, recomeçar, sempre; avançar, diariamente” (São João Paulo ll).
“Para cada cristão, não é possível imaginar a própria missão, na terra, sem a conceber como um caminho de santidade, porque “a vontade de Deus é que sejais santos” (1Ts 4,3). Cada Santo é uma missão; é um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, em um momento determinado da história, um aspecto do Evangelho” (Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, 19).
Exortação Apostólica continua: “Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. És uma consagrada ou um consagrado? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho a serviço dos irmãos. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem Jesus. Estás investido em autoridade? Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais. Deixa que a graça do teu Batismo frutifique em um caminho de santidade. Deixa que tudo esteja aberto a Deus e, para isso, opta por Ele, escolhe Deus, sem cessar” (GE, 14 e 15).
O Senhor pede-nos, de modo especial, na Quaresma, o jejum, pois o jejum “fortifica o espírito, mortificando a carne e a sua sensualidade; eleva a alma a Deus; abate a concupiscência, dando forças para vencer e amortecer as suas paixões, e prepara o coração para que não procure outra coisa, senão agradar a Deus, em tudo” (São Francisco de Sales). Estejamos atentos, pois, a Quaresma oferece-nos a oportunidade de refletir, mais uma vez, sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito, este é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e a partilha, pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal.
Supliquemos, com fervor, à Maria Santíssima, a fim de que acompanhe o nosso caminho quaresmal, com a sua tutela, e nos ajude a imprimir, no nosso coração e na nossa vida, as palavras de Jesus Cristo, para nos convertermos a Ele.
Abre-se, agora, um tempo em que este recomeçar em Cristo irá apoiar-se numa particular graça de Deus. Por isso, a mensagem da Quaresma está perpassada de alegria e de esperança, ainda que seja uma mensagem de penitência e mortificação. É um convite insistente para purificar a nossa alma e recomeçar. O Senhor quer que nos desapeguemos das coisas da terra para que possamos dirigir-nos a Ele, quer que nos afastemos do pecado, que envelhece e mata, e retornemos à fonte da Vida e da Alegria.
Contamos sempre com a Graça de Deus para vencer qualquer tentação. “Não te esqueças, meu amigo, de que precisas de armas para vencer nesta batalha espiritual. As tuas armas serão: a oração contínua, a sinceridade e franqueza com o teu diretor espiritual, a Santíssima Eucaristia e o Sacramento da Confissão; um generoso espírito de mortificação cristã – que te levará a fugir das ocasiões e a evitar a ociosidade –, a humildade de coração e uma devoção terna e filial à Santíssima Virgem – Consoladora dos aflitos e Refúgio dos pecadores. Dirige-te sempre a Ela, com confiança, e diz-lhe: Minha Mãe, confiança minha!”