Mapeando o Mistério: a Estrutura do De Trinitate de Santo Agostinho

Pe. Anderson Alves

Após compreender os fundamentos temáticos e metodológicos do De Trinitate, avançamos agora para sua estrutura, cuidadosamente delineada para conduzir o leitor não apenas à compreensão doutrinal, mas à contemplação amorosa do mistério trinitário. Esta arquitetura teológica, como reconhecida por A. Trapè e outros estudiosos, não obedece a um padrão meramente linear, mas revela um verdadeiro caminho espiritual, uma ascensão progressiva da fé simples à sabedoria iluminada pela caridade.

Tradicionalmente, os quinze livros que compõem a obra são agrupados em duas grandes partes: os sete primeiros como expressão da chamada teologia positiva — fundamentada no testemunho revelado —, e os oito últimos como exercício da teologia especulativa — marcada pelo recurso à razão e à introspecção filosófica. Neste arranjo, o oitavo livro atua como ponte, ligando o dado bíblico à meditação interior, ao modo de um portal entre o ouvir e o ver, entre o crer e o contemplar.

Segundo o esquema traçado por A. Trapè, a estrutura se distribui da seguinte maneira:

Livros I–IV: Fundamentam a unidade e igualdade das três Pessoas da Trindade com base nas Sagradas Escrituras. Agostinho mergulha nos textos bíblicos para evidenciar que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são verdadeiramente um único Deus.

Livros V–VII: Reforçam essa doutrina por meio da reflexão especulativa sobre as relações entre as Pessoas divinas, estabelecendo os fundamentos racionais do dogma trinitário.

Livro VIII: Marca o início de uma nova etapa, guiando o leitor à elevação mística, através de noções como verdade, bondade, justiça e caridade. É aqui que a razão começa a tocar os contornos do infinito.

Livros IX–XIV: Propõem uma instigante busca pelas vestigia Trinitatis, isto é, os vestígios da Trindade na alma humana e no mundo criado. Neste segmento, Agostinho oferece a famosa analogia psicológica da Trindade: memória, inteligência e vontade como reflexos da comunhão divina.

Livro XV: Conclui a obra com um epílogo luminoso, que recapitula os temas anteriores e convida o leitor à vida espiritual, ao tempo que aprofunda questões bíblicas sobre as processões do Filho e do Espírito Santo.

Ao longo desse percurso, o leitor é desafiado a ir além do conceito. A proposta de Agostinho não é apenas doutrinar, mas provocar uma transformação interior, que permita ao intelecto purificado alcançar o vislumbre do Deus vivo. Tal processo pressupõe um movimento ascensional que passa necessariamente pela purificação.

Agostinho afirma com clareza: “A razão já purificada deve aplicar-se à contemplação do eterno” (De Trinitate, IV, 18, 24). Essa purificação ocorre mediante a fé e adesão sincera às obras de Deus na história da salvação. Não se trata de um esforço puramente racional, mas de um caminho de conversão, que liberta o ser humano dos obstáculos que impedem o amor e conduz à verdadeira liberdade no Espírito.

Em seu diálogo com a tradição filosófica, Agostinho cita Platão, ao lembrar que “a eternidade é em relação ao princípio o que a verdade é em relação à fé”. Tal conexão entre a busca filosófica e o horizonte cristão caracteriza a ousadia do pensamento agostiniano: valoriza-se a razão, mas ela é orientada, fecundada e elevada pela fé.

Essa estrutura literária e teológica é tanto rigorosa quanto espiritual. Ela exige do leitor humildade intelectual e abertura espiritual, pois não se caminha impunemente entre os mistérios de Deus. Como o próprio Agostinho reconhece, é Deus quem permite a aproximação: “a quem palavra alguma é capaz de dá-lo a conhecer”. Portanto, o caminho da teologia não é apenas pesquisa, mas é também oração, é espera confiante daquele que deseja conhecer o amor que o criou.

Vale destacar que estas reflexões são fruto de um processo coletivo de escuta, pesquisa e debate realizados pelo grupo de estudos da Universidade Católica de Petrópolis, nos anos de 2023, 2024 e 2025. Alunos dos cursos de Filosofia, Teologia e História, movidos pelo interesse comum pela obra agostiniana, aprofundaram com zelo e sensibilidade os múltiplos aspectos do De Trinitate.

A todos os participantes, agradeço com entusiasmo e gratidão. Suas perguntas, provocações e contribuições iluminaram o caminho trilhado nestes escritos. Que esta série de artigos inspire outros leitores a retomarem essa obra monumental — não como um texto de erudição distante, mas como um convite à contemplação, à fé pensada e ao desejo inquieto de compreender, ainda que parcialmente, o mistério de Deus Uno e Trino.

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