Expusemos brevemente o que seria a inteligência humana e agora devemos nos perguntar sobre o que seria a inteligência artificial. Ela seria realmente inteligente e semelhante à humana? A “Mensagem para o Dia da Paz”, de 2024, dá algumas indicações sobre o tema. Diz que da inteligência artificial, até ao momento, não existe uma definição unívoca no mundo da ciência e da tecnologia. A designação, que entrou na linguagem comum, “abrange uma variedade de ciências, teorias e técnicas destinadas a fazer com que as máquinas, no seu funcionamento, reproduzam ou imitem as capacidades cognitivas dos seres humanos”. São, pois, máquinas feitas e programadas por humanos que buscam imitar à ação humana.
Com efeito, Luciano Floridi em “Ética da inteligência artificial” diz que não temos uma definição precisa de “IA”. Ele cita um relatório de 2007 (Legg, Hunter) que elencava 53 definições de “inteligência” e 18 definições de IA (p. 40). Ele explica que muitas pessoas pensam que a IA seja capaz de agir artificial e comportamento inteligente em novos artefatos. Na verdade, ocorre exatamente o contrário. A revolução digital tornou possível que a IA separasse a capacidade de resolver um problema ou de cumprir uma tarefa (como traduzir um texto) com o uso da inteligência ao fazê-lo. A IA realiza com sucesso a sua tarefa porque cumpre a exigência de não ser inteligente (p. 34). Com isso, a IA atualiza uma definição clássica de IA, elaborada por McCarthy, Minsky, Rocester e Shannon no ano de 1955, no chamado “Proposta para o projeto estivo de pesquisa sobre inteligência artificial de Dartmouth”. O texto diz: “Pelo presente escopo o problema de inteligência artificial é aquele de fazer com que uma máquina aja com modalidades que seriam definidas inteligentes se um ser humano se comportasse do mesmo modo” (reedição em 2006). A IA realiza, pois, um divórcio profundo entre agir e inteligência, dando origem a novos desafios éticos.
A Mensagem do Papa diz que seria melhor falarmos de “formas de inteligência”, no plural, para assim marcar “o fosso intransponível existente entre estes sistemas, por mais surpreendentes e poderosos que sejam, e a pessoa humana”. Os sistemas seriam, pois, “fragmentários” já que têm possibilidades de imitar ou reproduzir apenas algumas funções da inteligência humana. A inteligência humana seria compreensiva, capaz de apreender a realidade e os conjuntos. De fato, compreendemos que as inteligências artificiais podem nos ajudar a relacionar os conceitos (os dados inseridos nelas), a realizar e conferir a validade dos raciocínios (segundas e terceiras operações intelectuais), mas não são capazes de conhecer a realidade (primeira operação intelectual), nem de fazer um juízo moral sobre as suas próprias ações (aspecto essencial da razão prática).
O Documento também chama a IA de “sistemas sociotécnicos”. Pois o seu impacto, “independentemente da tecnologia de base, depende não só da projetação, mas também dos objetivos e interesses de quem os possui e de quem os desenvolve, bem como das situações em que são utilizados”. De fato, não há pesquisa científica e inovações tecnológicas desencarnadas da realidade ou “neutrais”. Elas estão sujeitas às influências culturais e aos interesses dos que as projetaram; muitas vezes, são interesses meramente econômicos, que não consideram o bem comum, os efeitos das tecnologias sobre a saúde e a educação das pessoas, especialmente as mais vulneráveis (como as crianças, os adolescentes e os mais pobres).
De forma que “não podemos presumir a priori que o desenvolvimento [das inteligências artificiais] traga um contributo benéfico para o futuro da humanidade e para a paz entre os povos”. Essas tecnologias são obras humanas e devem seguir valores baseados na nossa autêntica identidade e noção de bem humano e bem da sociedade. A Mensagem diz que “o resultado positivo só será possível se nos demonstrarmos capazes de agir de maneira responsável e respeitar valores humanos fundamentais como ‘a inclusão, a transparência, a segurança, a equidade, a privacidade e a fiabilidade’”. O único critério elencado pelo Documento, que poderíamos discutir é o da “inclusão”, pois, se chegarmos à conclusão de que essas tecnologias geram mais males do que bens, por que devemos desejar que elas se tornem acessíveis a todos?
O texto pontifício diz ainda: “A dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade que nos une como membros da única família humana devem estar na base do desenvolvimento de novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar antes da sua utilização, para que o progresso digital possa verificar-se no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz. Os avanços tecnológicos que não conduzem a uma melhoria da qualidade de vida da humanidade inteira, antes pelo contrário agravam as desigualdades e os conflitos, nunca poderão ser considerados um verdadeiro progresso”.