Em 08/12/2023 o Papa Francisco publicou a sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz, celebrado em 01/01/2024. O tema da mensagem foi “Inteligência artificial e paz”. É um documento de dez páginas que, pela sua extensão, profundidade e importância poderia ser considerado uma pequena encíclica. Além disso, em 24/04/24, o Papa divulgou uma Mensagem para o LVIII Dia Mundial Das Comunicações Sociais (12/05/24). O tema então foi “Inteligência artificial e sabedoria do coração: para uma comunicação plenamente humana”. Esses dois textos mostram a relevância do tema para a Igreja e a sociedade atual.
A Mensagem para o Dia Mundial da Paz começa expondo o significado da inteligência humana e da técnica. Segundo a Sagrada Escritura, Deus deu aos homens o seu Espírito, para terem “sabedoria, inteligência e capacidade para toda a espécie de trabalho” (Ex 35, 31). De fato, pela sua memória, inteligência e vontade o homem é imagem e semelhança de Deus, como Santo Agostinho o expôs de forma magistral em De Trinitate. Pela memória o homem é imagem e semelhança de Deus Pai; pela razão, do Filho; e, pela vontade, o homem é imagem e semelhança do Espírito Santo, que é o amor eterno e pessoal do Pai e do Filho.
Segundo Santo Tomás de Aquino, “totius libertatis radix est in ratione constituta”. (De Veritate, q. 24, a. 2), ou seja, toda a raiz da liberdade está na razão. Por ela, somos livres, capazes de escolher entre o bem e o mal, de agir ou não agir, de agir desse modo ou de modo diferente. Ela é a nossa capacidade de escolha, de autodeterminação, que implica a ausência de coação externa e de obstáculos internos. Santo Tomás distingue o intelecto da razão. Pelo intellectus, apreendemos a realidade. Ele é a nossa capacidade de “ler dentro” (intus leggere), ou seja, de apreender as essências das realidades concretas e formar o seu conceito universal e espiritual. Essa é a primeira e mais fundamental operação intelectual. Segundo Santo Tomás, o homem é infalível nessa operação. De fato, se ele falhasse na formação dos conceitos, não seria capaz das demais operações e todo o processo intelectual seria impossível. A ratio realiza a segunda atividade intelectual do homem: é a nossa capacidade discursiva, de passar de uma realidade conhecida para outra menos conhecida. Ela nos permite unir e separar os conceitos, formados na primeira operação, ou seja, ela nos permite julgar, discernir e relacionar os diversos juízos em raciocínios (terceira operação intelectual).
Pela inteligência (palavra genérica que engloba intellectus e ratio) o homem apreende a realidade e age sobre ela. Nesse sentido, a razão pode ser teórica, na medida em que apreende a realidade, e prática, quando transforma a realidade a partir dos próprios conhecimentos. A razão prática também julga a bondade e maldade das suas escolhas, ou seja, é a nossa capacidade ética, que parte de um conhecimento fundamental, deduzido da apreensão de algo como bom; esse juízo, presente em todas as nossas escolhas livres, é o seguinte: “o bem deve ser feito e o mal deve ser evitado”. Desde São Jerônimo, isso é chamado de sindérese, que é o fundamento da nossa consciência moral.
A inteligência é, pois, uma faculdade “fundamentalmente relacional” e se manifesta de modo particular na ciência e na tecnologia, que são produtos extraordinários da criatividade da razão prática. Essa é diretiva da ação humana e julga a moralidade dos nossos atos livres, a partir do conhecimento da realidade. Segundo Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, “quando os seres humanos, recorrendo à técnica, se esforçam por que a terra se torne habitação digna para toda a humanidade, agem segundo o desígnio divino e cooperam com a vontade que Deus tem de levar à perfeição a criação e difundir a paz entre os povos”. “Assim o próprio progresso da ciência e da técnica […] leva ao aperfeiçoamento do homem e à transformação do mundo”.
Segundo a Mensagem, a ciência e a tecnologia puseram remédio a inúmeros males que afligiam a humanidade. Entretanto, as possibilidades delas são tão grandes que podem constituir “um risco para a sobrevivência humana e um perigo para a casa comum”; podem trazer “sérias implicações na prossecução da justiça e da harmonia entre os povos”. De forma que o homem deve se perguntar agora: “quais serão as consequências, a médio e longo prazo, das novas tecnologias digitais? E que impacto terão elas sobre a vida dos indivíduos e da sociedade, sobre a estabilidade e a paz?”.