De Leão XIV a Santo Agostinho: Fé e Inteligência a Serviço da Dignidade Humana

Pe. Anderson Alves

Na sua primeira mensagem após a eleição, o Papa Leão XIV declarou-se “um filho de Santo Agostinho”, recordando com emoção as palavras do bispo de Hipona: “Para vós eu sou bispo, convosco sou cristão.” O gesto não foi apenas simbólico. Em um encontro com os cardeais, no dia 10 de maio, ele explicou a escolha do nome pontifício. Segundo Leão XIV, diante da atual revolução tecnológica, é urgente recordar o Papa Leão XIII, que liderou a Igreja entre 1878 e 1903 e defendeu com coragem os direitos dos trabalhadores.

Ele afirmou: “O Papa Leão XIII, de fato, com a histórica Encíclica Rerum novarum, enfrentou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial; e hoje a Igreja oferece a todos o seu patrimônio de doutrina social para responder a uma nova revolução industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial, que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”.

Nesse contexto, retomar a herança de Santo Agostinho, especialmente sua obra De Trinitate, é mais do que um exercício teológico; é uma busca profunda por compreender a fé diante dos grandes desafios da humanidade. Escrita ao longo de décadas, De Trinitate representa uma das mais elaboradas reflexões sobre o mistério da Santíssima Trindade, unindo uma teologia rigorosa a uma intensa espiritualidade.

Agostinho não escondeu as dificuldades que enfrentou. Em 415, escreveu ao amigo Evódio: “Neste momento, nem sequer quero continuar os livros sobre a Trindade que há tempo trago nas mãos e que ainda não concluí. Dão-me demasiada fadiga, e imagino que são poucos aqueles que o entenderam, mas segundo minha esperança serão úteis a muitos” (Ep. 169, 1, 1). E, mais adiante, em carta ao bispo Aurélio de Cartago, confessou: “Jovem comecei e velho acabo de editar uns livros acerca da Trindade” (De Trinitate, Ep. 174).

A redação da obra aconteceu em duas fases distintas. Os livros I a XII começaram a ser escritos em 399 e chegaram a circular sem o aval do autor. Já os livros XIII a XV foram compostos posteriormente, em um momento de maturidade teológica. A data exata da conclusão é incerta, mas estudiosos como Bonnardière e Hendrikx situam-na entre os anos de 419 e 426.

De Trinitate não foi escrita para responder a controvérsias ou para atender a pedidos pastorais, como muitas outras obras de Agostinho. Foi motivada por um desejo interior profundo — aquele mesmo que ele expressa em seus Solilóquios: “Conhecer a Deus e conhecer a alma”. Essa aspiração transborda nas páginas da obra, onde se percebe o esforço constante de reconciliar a razão com a fé, de sondar os mistérios divinos sem perder de vista o coração humano.

Agostinho buscou compreender a Trindade partindo da criação, especialmente da alma humana, feita à imagem e semelhança de Deus. A analogia psicológica da Trindade, intuída já no livro XIII das Confissões, ganha forma plena em De Trinitate, onde a memória, o entendimento e a vontade refletem, de modo misterioso, a presença da Trindade no ser humano.

O esforço de Agostinho é ao mesmo tempo teológico e existencial. Ele não escreve como um acadêmico distante, mas como alguém que deseja ardentemente “elevar-se ao mais alto grau de contemplação da verdade revelada.” É essa união entre inteligência e fé, razão e oração, que confere à obra sua relevância atemporal.

Revisitar De Trinitate nos dias de hoje, à luz das palavras de Leão XIV, é reconhecer que os desafios contemporâneos — como a inteligência artificial e a transformação do mundo do trabalho — exigem respostas enraizadas em fundamentos sólidos da fé. Se Leão XIII respondeu à Revolução Industrial com justiça social, e Leão XIV aponta para a dignidade humana no contexto digital, é porque a verdade revelada segue sendo fonte de orientação segura.

E Agostinho, com sua coragem intelectual e mística, continua a nos inspirar a buscar essa verdade — não com respostas prontas, mas com o mesmo desejo inquieto que ele expressou em cada linha de sua obra.

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