Segundo um antigo axioma medieval, fundamental para a ética, o agir segue o ser (agere sequitur esse). Com a invenção das inteligências artificiais, o agir, o inteligir (e consequentemente o ser) não estão mais unidos. Ocorre aqui uma cisão ou divórcio entre o agir e a inteligência biológica, conforme afirma Floridi. A IA pode então agir, mesmo desconectada da biologia. Pode realizar algo mal, mas nunca será “moralmente” responsável pelas suas ações. De modo que a IA não exime a responsabilidade moral dos homens sobre os atos por ela realizados, ao contrário, aumenta a responsabilidade humana por tudo o que uma inteligência artificial pode fazer. Nesse sentido, a inteligência artificial pode ser um instrumento de promoção da autorrealização humana. Pode ajudar a ter mais tolerância, a cultivar a coesão social, a fortalecer o vínculo entre os seres humanos em uma sociedade livre.
A visão de Floridi é diversa de outros pensadores e desenvolvedores da IA. Recentemente, o jornalista irlandês Mark O’Connell viajou para os Estados Unidos para se encontrar com pensadores, especialistas em programação ou engenheiros, convictos de que podiam derrotar a morte e o envelhecimento. A partir da sua viagem, foi publicado o livro “To Be A Machine”, em 2018. Ele relata o seu encontro com milionários, promotores das IAs, na Califórnia, que trabalham e estão convencidos de que seja possível cancelar a morte. Eles são os trans-humanistas, que esperam um futuro no qual seremos imortais ou viveremos entre 500 e 1.000 anos.
Para o trans-humanismo chegará o dia em que a evolução tecnológica libertará a inteligência humana (o software), presa em um corpo, considerado o hardware biológico. Os nossos cérebros serão então digitalizáveis, reproduzíveis na rede e instalados como um programa. Isso é mais do que uma teoria ou ficção científica: em 2013, o Google fundou o Calico, um centro de biotecnologia que busca a longevidade e o prolongamento da vida. O’Connell relata o caso de um homem que protestou na sede de Mountain View com um cartaz que dizia: “imortalidade já! Google, por favor, resolva o problema da morte”.
Entre os milionário e engenheiros da Califórnia existe os “singularistas”, que estão convencidos de que o apocalipse da espécie humana ocorrerá por obra das inteligências artificiais. O’Connell fala no seu livro de Aubrey De Gray. Biogerontólogo, especialista em genética, matemático e cientista da informação, que busca fundos privados e fundou o SENS, que visa prolongar a vida dos seres humanos para pelo menos 1.000 anos. Segundo De Gray, a morte por causas ligadas à velhice é um genocídio silencioso.
Floridi, por sua vez, considera a IA uma tecnologia digital comum. Esta tecnologia caracteriza-se por uma particularidade: é uma nova forma de ação eficaz “mas não inteligente” (p. 65), possibilitada pela revolução digital ou, mais precisamente, pelo “desalinhamento digital entre a ação e inteligência” (p. 21).