Falamos anteriormente da crise econômica, surgida em 2008 na Europa, e como a Encíclica Caritas in veritate de Bento XVI foi, em boa medida, uma resposta aos problemas então levantados. Vimos como o papa colocou em relação a crise econômica com a crise demográfica. Na época, muitos tendiam a explicar a crise com motivos puramente matemáticos, econômicos e técnicos. E não viam a raiz de tudo: a crise moral. Bento XVI, na Encíclica, afirmou: “Muitas vezes, ao longo da história, pensou-se que era suficiente a criação de instituições para garantir à humanidade a satisfação do direito ao desenvolvimento. Infelizmente foi depositada excessiva confiança em tais instituições, como se estas pudessem conseguir automaticamente o objetivo desejado. Na realidade, as instituições sozinhas não bastam, porque o desenvolvimento humano integral é primariamente vocação e, por conseguinte, exige uma livre e solidária assunção de responsabilidade por parte de todos” (Caritas in veritate, n. 11).
O capítulo sexto daquela Encíclica trata o problema da técnica e a sua relação com o progresso humano. Diz que a técnica é boa, justa e necessária, porém as graves questões atuais não podem ser resolvidas com um tratamento puramente “técnico”. A vida econômica, política, os problemas bioéticos não podem ser regulados simplesmente pela técnica. De fato, “o absolutismo da técnica tende a produzir uma incapacidade de perceber tudo aquilo que não se explica com a pura matéria” (n. 77). Um puro tratamento técnico das questões humanas é insuficiente e frequentemente desumano.
Bento XVI valorizava o papel da razão e da técnica. Afirmou que a vida social necessita da confiança e do princípio da gratuidade, ou seja, da caridade. Ele afirmou na Encíclica: “As exigências do amor não contradizem as da razão. O saber humano é insuficiente e as conclusões das ciências não poderão sozinhas indicar o caminho para o desenvolvimento integral do homem. Sempre é preciso lançar-se mais além: exige-o a caridade na verdade. Todavia ir mais além nunca significa prescindir das conclusões da razão, nem contradizer os seus resultados. Não aparece a inteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor” (n. 30). Por isso, alertou: “A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade. Esta tem origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amou primeiro, ensinando-nos por meio do Filho o que é a caridade fraterna” (n. 19).
A caridade é, pois, essencial para iluminar a vida humana, inclusive a economia e a técnica. “Só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objetivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora. A partilha dos bens e recursos, da qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurada pelo simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem e abre à reciprocidade das consciências e das liberdades” (n. 9). Ele recorda algo afirmado diversas vezes pelos Papas que escreveram sobre temas sociais: “A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e não pretende ‘de modo algum imiscuir-se na política dos Estados’; mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, da sua vocação” (n. 9).
Bento XVI recordava a reflexão da Igreja sobre esses temas. “Contra a ideologia tecnocrática, hoje particularmente radicada, já Paulo VI tinha alertado, ciente do grande perigo que era confiar todo o processo do desenvolvimento unicamente à técnica, porque assim ficaria sem orientação” (14). A Encíclica se refere à técnica de modo geral, não considera apenas a tecnologia ou a ciência aplicada, mas sim todo saber instrumental. E diz: “o desenvolvimento da pessoa degrada-se, se ela pretende ser a única produtora de si mesma. De igual modo, degenera o desenvolvimento dos povos, se a humanidade pensa que se pode recriar valendo-se dos ‘prodígios’ da tecnologia. Analogamente, o progresso econômico revela-se fictício e danoso quando se abandona aos ‘prodígios’ das finanças para apoiar incrementos artificiais e consumistas. Perante esta pretensão prometeica, devemos robustecer o amor por uma liberdade não arbitrária, mas tornada verdadeiramente humana pelo reconhecimento do bem que a precede. Com tal objetivo, é preciso que o homem reentre em si mesmo, para reconhecer as normas fundamentais da lei moral natural que Deus inscreveu no seu coração” (n. 68). A técnica não basta para resolver aos problemas humanos: é necessário analisar a própria alma e redescobrir os valores morais.
A técnica, porém, é algo bom e fundamental. “A técnica é um dado profundamente humano, ligado à autonomia e à liberdade do homem. Nela exprime-se e confirma-se o domínio do espírito sobre a matéria” (n. 69). Entretanto, “A técnica, em si mesma, é ambivalente. Se, por um lado, há hoje quem seja propenso a confiar-lhe inteiramente tal processo de desenvolvimento, por outro, assiste-se à investida de ideologias que negam in toto a própria utilidade do desenvolvimento, considerado radicalmente anti-humano e portador somente de degradação” (n. 14).
A condenação pura e simples da técnica, entretanto, seria um erro. O abuso não impede o uso. “Deste modo, acaba-se por condenar não apenas a maneira errada e injusta como por vezes os homens orientam o progresso, mas também as descobertas científicas que entretanto, se bem usadas, constituem uma oportunidade de crescimento para todos. A ideia de um mundo sem desenvolvimento exprime falta de confiança no homem e em Deus. Por conseguinte, é um grave erro desprezar as capacidades humanas de controlar os extravios do desenvolvimento ou mesmo ignorar que o homem está constitutivamente inclinado para ‘ser mais’. Absolutizar ideologicamente o progresso técnico ou então afagar a utopia duma humanidade reconduzida ao estado originário da natureza são dois modos opostos de separar o progresso da sua apreciação moral e, consequentemente, da nossa responsabilidade” (n. 14).
Portanto, a condenação absoluta ou a aprovação total da técnica são dois erros igualmente fatais. Implicam a negação do valor moral da técnica e, em última instância, a negação da liberdade e da responsabilidade humanas.