Bento XVI procura responder em Deus caritas est a duas objeções ao chamado “mandamento do amor”, presente no Antigo Testamento e fundamental para judeus e cristãos. São elas: a) é possível amar a um Deus que não é visto? b) E, talvez a objeção mais grave: o amor pode ser mandado? De fato, não é fácil responder a essas questões. Se ninguém jamais viu a Deus, como ele pode ser ele amado pelos homens? E o amor não seria um sentimento espontâneo, independente da vontade?
O Papa afirma que efetivamente ninguém jamais viu a Deus. Entretanto, Deus não é totalmente invisível e inacessível aos homens. Pois ele nos amou primeiro (Jo 4, 10) e se fez se visível quando “enviou o seu Filho unigênito ao mundo, para que, por Ele, vivamos” (1 Jo 4, 9). Deus se revelou em Jesus Cristo e por ele podemos ver o Pai (Jo 14, 9). Deus se fez visível, até lavar os nossos pés e morrer na cruz por nós. O amor de Deus também está presente, de forma oculta e misteriosa, na história da Igreja. De modo que incessantemente ele se revela nas Escrituras, na liturgia, no serviço prestado pelos cristãos e no profundo das almas dos homens, criados à imagem e semelhança de Deus.
Além disso, o amor é mais do que um mero sentimento espontâneo e irracional. Os antigos romanos definiam o amor com uma fórmula: “Idem velle atque idem nolle”, ou seja, querer as mesmas coisas e não querer o mesmo. Desse modo, o amor maduro implica uma identificação de vontade e leva o amante a se assemelhar à pessoa amada. O amor é uma força de união, que integra o querer, o pensar e o agir. De forma que o amor a Deus é muito mais do que um simples mandato. Disse Bento XVI: “A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no fato de que esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim, o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impõem de fora os mandamentos, mas é a minha própria vontade, baseada na experiência de que realmente Deus é mais íntimo a mim mesmo de quanto o seja eu próprio” (Deus caritas est, n. 17).
O amor ao Deus invisível passa então pelo amor ao próximo. Bento XVI recordava uma forte e central afirmação da obra de Santo Agostinho, De Trinitate: “Se vês a caridade, vês a Trindade”. Isso recorda-nos um texto do “Livro A Autólico”, de São Teófilo de Antioquia, um autor do século segundo, em que ele comenta a afirmação bíblica: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”. O autor daquele antiquíssimo texto diz:
“Se me disserem: ‘Mostra-me o teu Deus’, dir-te-ei: ‘Mostra-me o homem que és e eu te mostrarei o meu Deus’. […] Na verdade, Deus é visível para aqueles que são capazes de vê-lo, porque mantêm abertos os olhos da alma. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não veem a luz do sol. E se os cegos não veem, não é porque a luz do sol deixou de brilhar; a si mesmos e a seus olhos é que devem atribuir a falta de visão. É o que ocorre contigo: tens os olhos da alma velados pelos teus pecados e tuas más ações”.
Mais adiante o autor daquela obra diz: “O homem deve ter a alma pura, qual um espelho reluzente. Quando o espelho está embaçado, o homem não pode ver nele o seu rosto; assim também, quando há pecado no homem, não lhe é possível ver a Deus. Mas, se quiseres, podes ficar curado. Confia-te ao médico e ele abrirá os olhos de tua alma e de teu coração”.
A Doutrina Social da Igreja é um serviço de amor da comunidade dos crentes à sociedade. Ela pretende iluminar a nossa forma de viver e de agir no mundo, a partir da verdade fundamental sobre o ser humano. De forma que a ação social do cristão é marcada pela caridade. Ela nos leva a agradecer a Deus pelas maravilhas da criação, a reconhecer a ameaça do pecado e a querer redimir todas as coisas, com a força transformante do amor. O pensamento social cristão vê em cada pessoa uma ser com uma dignidade altíssima, inalienável, principalmente porque foi amado antes de existir. De forma que “ser” significa “ser amado”. O amor é o fundamento da existência e deve também ser o alicerce do agir de todas as criaturas racionais.