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A Doutrina Social da Igreja como forma de viver a caridade na verdade (parte I) – Pe. Anderson Alves

Dissemos anteriormente que para J. Ratzinger o amor é o início e o fim da vida cristã (artigo de 04/01/23). A sua primeira obra escrita foi a tradução das Questões disputadas sobre a caridade, de Santo Tomás de Aquino, quando ele tinha apenas 18 anos. A primeira encíclica de Bento XVI tratou do mesmo tema. Para ele, o início da criação está no ato de amor de Deus. Deus ama e por isso as coisas passam a existir. O seu amor gera uma ordem, uma palavra, um “faça-se”, que gera a maravilha criada. Por outro lado, o início da vida cristã está no reconhecimento do amor de Deus pela sua criação e por nós. E o fim da nossa vida é entrar em comunhão de pensamento e de amor com Deus. De forma que do amor saímos e para o amor voltamos.

Bento XVI começou o seu magistério com a publicação de uma Encíclica que trata do mistério do amor de Deus: Deus caritas est. O mesmo tema é desenvolvido na sua encíclica sobre a Doutrina Social da Igreja: Caritas in veritate. No primeiro documento, o papa reconhece que “O termo ‘amor’ tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, à qual associamos significados completamente diferentes”. Ele busca o significado do termo, na Antiguidade, nas culturas grega, romana e judaica. “Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros”. O Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, e o Novo Testamento nunca a usa: “das três palavras gregas relacionadas com o amor — eros, philia (amor de amizade) e agape — os escritos neo-testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado”. O amor de amizade (philia) é tomado com um significado profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. “A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor” (Bento XVI, Deus caritas est, n. 3).

O papa procura responder na sua primeira encíclica ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche, segundo o qual o cristianismo teria dado veneno ao eros, que, embora não tivesse morrido, teria recebido o impulso para degenerar em vício. Ele queria expressar com isso que a Igreja, com os seus mandamentos e proibições, teria tornado amarga a coisa mais bela da vida.

Bento XVI afirma que, nas culturas antigas, especialmente a grega e romana, havia uma exaltação do eros. Entenderam o eros como a subjugação da razão por parte duma “loucura divina” que arranca o homem das limitações da existência e lhe faz experimentar a mais alta felicidade. Esse seria o sentido do “Omnia vincit amor” (o amor vence todas as coisas) de Virgílio. Isso gerava, na Antiguidade, a prostituição sagrada e o eros era entendido como uma forma de entrar em comunhão com o divino.

“A esta forma de religião, que contrasta como uma fortíssima tentação com a fé no único Deus, o Antigo Testamento opôs-se com a maior firmeza, combatendo-a como perversão da religiosidade. Ao fazê-lo, porém, não rejeitou de modo algum o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o”. “Por isso, o eros inebriante e descontrolado não é subida, ‘êxtase’ até ao Divino, mas queda, degradação do homem” (Deus caritas est, n. 4).

Esse tipo de experiência nos ensina duas coisas: que entre o amor e o Divino existe qualquer relação: “o amor promete infinito, eternidade — uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência”. E “o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto”. Hoje em dia, a experiência se repete: “O eros degradado a puro ‘sexo’ torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma ‘coisa’ que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria”. Como consequência: “A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-se em ódio à corporeidade” (Deus caritas est, n. 5).

De modo que o eros não pode nem ser exaltado nem menosprezado. O cristianismo entendeu bem essa questão e não deixa de ensiná-lo. Bento XVI diz: “Sim, o eros quer-nos elevar ‘em êxtase’ para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos”. De fato, “o amor visa a eternidade”. O amor é “êxtase”: “não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus” (Deus caritas est, n. 6).

O cristianismo integra o eros e o agape. Inicialmente o eros foi entendido como um amor “mundano” e o agape seria expressão do amor fundado sobre a fé. As duas concepções apareceram na história do pensamento como amor “ascendente” e amor “descendente”, como “amor possessivo” e “amor oblativo”, “amor concupiscentiæ” e “amor benevolentiæ”. Às vezes o pensamento filosófico ocidental contrapôs o amor grego e pagão (eros) ao amor cristão (agape). Mas essa oposição é falsa. Ambos se complementam e são realidades plenamente humanas, que nos encaminham ao encontro com o divino. Bento XVI afirma: “Na realidade, eros e agape — amor ascendente e amor descendente — nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimensões, na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral. Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente — fascinação pela grande promessa de felicidade — depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará ‘existir para’ o outro” (Deus caritas est, n. 7).

Continuaremos a desenvolver o tema do amor na primeira Encíclica de Bento XVI e mostraremos a sua conexão com o documento que ele publicou sobre a Doutrina Social da Igreja nos próximos textos.

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